Capítulo Único: A Fome
Era hora do almoço, finalmente. Já estava com fome desde cedo e parecia que a cada tarefa do trabalho que tinha de fazer, o estômago reclamava cada vez mais. Contudo sabia que no fundo a culpa era toda dele mesmo. Na noite anterior praticamente não dormira de tanto fazer amor com a esposa, era óbvio que acordaria tarde e que não daria tempo para o café da manhã.
Por conta disso, agora estava saindo rapidamente e desesperado do local de trabalho em busca de um lugar decente para comer. Tinha o hábito de comer fast foods, mas hoje era inviável, o estômago gritava por comida de verdade.
Logo percebeu que não tinha a mínima idéia de onde havia um bom restaurante. Era novo na firma, e pela pressa sempre acabava comendo um gigantesco hambúrguer, não havia precisado de um restaurante até então, e saíra com tanta pressa do escritório, que simplesmente esquecera a possibilidade de perguntar a um dos colegas onde encontrar um.
Agora estava ali, parado, pensando no que fazer. Meio que coincidentemente, viu um avião passando no céu escondido pelos edifícios enormes do lugar. Divagando, percebeu que ainda não havia se acostumado com aquilo tudo. Vindo do subúrbio com sua esposa, nunca havia sentido tanta falta do céu. Quase não dava pra ver a beleza do azul daquele dia com tanto cinza em volta.
Lembrou que antes da mudança, costumavam ir ao terraço do prédio de oito andares (e como já achava aquilo grande!) em que moravam, ele e a mulher. Não importava a cor do céu, ou a claridade do Sol, sempre conversavam e namoravam horas a fio lá em cima. Sentiam estar no topo do mundo.
A notícia do novo emprego, da mudança, e principalmente de que seria pai de gêmeos o assustou muito. Percebeu que ainda não estavam no topo, que havia um caminho muito maior a trilhar. Sentia-se motivado, esperançoso em relação ao futuro. Haviam deixado de ver o céu com a freqüência de antes, mas sabia que estavam cada vez mais perto de alcançá-lo para logo matar a saudade.
O céu, já acostumado com os arranhões e perfurações feitas pelos prédios da cidade, que lhe doíam como farpas, estranhou quando sentiu um projétil rasgando-o. Na verdade, não estranhou tanto assim, aquilo era de certa forma bastante comum.
Ao som do grunhido de seu estômago, ele despertou de seus pensamentos. Era engraçado como seus pensamentos conseguiram fazê-lo esquecer da fome por alguns instantes. Deu dois passos a frente, em direção à faixa de pedestres. Então sentiu algo vir violentamente contra seu corpo.
Não pôde ver bem onde foi atingido, só sentiu um grande alagamento dentro de si – de repente uma veia ou artéria importante, vá saber. Ficou imóvel por alguns segundos, sentindo apenas dor. Pensava como não havia ouvido o barulho do tiro, o grito das pessoas... mas logo descobriu: o som da cidade abafou tudo. Os carros buzinando, os guardas apitando, as crianças correndo e gritando, as mães gritando e correndo... mas agora a cidade se calara – ou então era ele que não ouvia mais nada.
Enquanto seus cinco sentidos iam se perdendo um a um, lembrou do amor de sua vida e de seus gêmeos. Ainda não sabia se formariam um casal ou se seriam do mesmo sexo... a ultra estava marcada só para semana-que-vem. Não existia mais semana-que-vem para ele. Sentiu sua roupa molhada e seus tecidos internos encharcados como esponja. Foi a última sensação que teve.
Nos seus últimos milésimos de consciência, embora já houvesse perdido a visão, esperava ver toda a sua vida passar diante de seus olhos. Mas deduziu que ou isso de fato não acontecia com os que estavam prestes a morrer, ou que de repente já havia visto toda sua vida: vira sua mulher e seus filhos, era um casal, e estavam os três felizes brincando no parque.
E então seu corpo tombou para frente - mas não houve problema, já não podia mais sentir a dor da queda. Já não podia ouvir a cidade (embora tivesse certeza de que continuava com o barulho habitual), nem muito menos alcançar o céu, o que tanto almejava há poucos segundos atrás.
Seu coração então parou. O estômago se calara. Estava morto.
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